segunda-feira, 22 de novembro de 2010

TACACÁ



Interessantíssima a crônica de Mogilka sobre o tacacá, mesmo sendo gaúcha soube descrever com visceralidade aquilo que nós paraenses tão bem conhecemos e vivenciamos na absorção indescritível de cada elemento naturalíssimo de sua composição, como o tucupí, soro de amarelo vivo, sabor intenso e odor inebriante. Disse-me, certa vez o falecido Romeu Mariz, "o tucupí é tão gostoso, mas tão gostoso, que sandália havaiana no tucupí é uma delícia". A única exceção foi a folha referida, porém não nomeada e nem desgustada como deveria. O jambú, nosso afrodisíaco adstrigente com o seu sabor corrosivo e fremente que deixa nos beiços aquela sensação única de ardência equatorial provocativa de uma sede suspicaz que deixa a água com um sabor de saciedade refrescante. Confira.

Vera Mogilka²

 
 "O tacacá, toma-se? bebe-se? sorve-se? saboreia-se? Não, O tacacá  deseja-se, de repente, como se deseja uma mulher, como se deseja
 retornar ao amor da adolescência. 

O tacacá possui o toque agudo da  saudade. A memória de seu sabor salgado e ar­dente assalta-nos sem  aviso, em pleno dia, em determinadas horas de distração. Naquele  momento involuntário de repouso quando, por fim ao cair da tarde sobre  o rio, respiramos. Certo e pequeno instante, dezenas de sugestões  cruzam a mente. Todos os atos gratuitos e cheios de graça da vida: uma  criança correndo na grama, braços em repouso e um regaço, mãe  amamentando o filho, avião acendendo e apagando as luzes na bruma da  noite, navio singrando a baía, luar úmido sobre igarapés - vontade de  tomar tacacá. Desejo de tacacá. Porque, para tomá-lo, é preciso, antes  de tudo, um ritual.

 É preciso que seja ao anoitecer. Ainda não de todo noite completa;  ainda não dia findo. Àquela hora semi-crepuscular, indecisa e feminina  quando, por fim, o céu se envolve de um azul-cinzento intenso ou  aquela chuva antes da saída da lua. É preciso que estejamos cansados,
tão fatigados que nada nos afigure mais necessá­rio, naquele momento,  do que tomar um tacacá. Nem o bate-papo informal com o amigo. Nem o  café no Central. Nem o olhar à mulher que passa. Apenas, a pro­cura, a  única procura por um tacacá, com pouca pimenta ou muita e bem quente.

 Depois, é preciso que haja um banco. Tacacá toma-se sentado para que o  corpo repouse e possa se entregar completamente ao prazer de
saboreá-lo. Porque o tacacá é extremamente absorvente. Quando bem  feito, o que ocorre pouco. Pois fazê-lo e tomá-lo é uma arte. É preciso, também, que a noite desponte ao chegarmos junto ao carrinho  de tacacá. E comece a chover, levemente. Faça algo de frio, algo de
 úmido. O que não é difícil em Belém.

 Depois, como estamos cansados e  queremos esquecer, esperamos. Uma paciência longa e calma, até que a  dona do tacacá termine por prepará-lo. De preferência que seja em  Nazaré ou olhando a Igreja da Trindade. É preciso que o tucupi seja  leve, amarelo-canário e novo. Que a goma bóie no líquido, espalhada  por acaso e se mostre apenas por alguns instantes; que não haja muita  folha; que os três ou quatro camarões sejam médios, nem grandes demais  ou minúsculo e somente uma parte deles apareça, a ligeira carne rósea  a deixar-se entrever, adivinhar-se na cuia olorosa. Depois, é preciso  que haja sal e pimenta de cheiro, mas não em demasia; o suficiente  para nos queimar a alma nos primeiros goles e reanimar o corpo; então  renascemos para a noite e a alegria novamente nos habita. O suficiente  apenas para desvanecer seu fervor após esses primeiros goles e  tornar-se depois, uma presença quente, já quase uma memória, na ponta  da língua.

 É preciso saber tomar o tacacá. Aos primeiros sorvos integralmente seu  calor, sua salinidade, seu gosto de mar quente, de arbusto e molusco  que os lábios experimen­tam fugidiamente. É preciso que o jambu e os  camarões pousem lentamente no fundo da cuia e venham à boca, por si  mesmos, sem o auxílio dos dedos. É necessário que não sejamos   interrompidos. Apenas um aceno de cabeça aos conhecidos que passam. Um  filtro mágico que se bebe em silêncio e solidão. Somente a comunicação  imperceptível com a tacacazeira: feiticeira moderna numa terra onde as  lendas ainda sobrevivem em um mundo que se materializa  inexoravelmente. 

 Chegados ao fim do tacacá, é preciso que o mesmo ainda se conserve  morno, assim como o fim de um amor. Jamais frio. Não existe nada pior  do que um tacacá frio. É como champanhe sem gelo. Neste momento  tomaremos contacto real com as grandes porções maternais de goma  penetradas pelo tucupi e pela amargura das folhas. Há sempre um gato  gordíssimo perto do carro de uma tacacazeira. Ele comerá,
 displicentemente, as cascas de camarão que atirarmos ao chão. A cuia  está vazia.

 ¹ - Crônica publicada dia 16 de fevereiro de 1964, no jornal "A  Província do Pará" , editado diariamente em Belém do Pará.

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