A PAIXÃO DE CRISTO
REVELA-SE NA NOSSA PAIXÃO
”Era já mais ou menos a hora sexta quando houve treva sobre
a terra inteira até a hora nona, tendo desaparecido o sol. O véu do santuário
rasgou-se ao meio, e Jesus deu um grande grito: “Pai, em tuas mãos entrego o
meu espírito”. Dizendo isso expirou”. (Lc. 23, 44-46).
Jesus foi e continua sendo um sinal de contradição para os
homens enquanto Filho de Deus, que veio para salvar a humanidade de sua
condição de miséria, fruto da natureza decaída, e condição de controvérsia para
as paixões humanas: o egoísmo, o poder, a violência, as drogas, o tráfico, os
assassinatos, os assaltos, a falta de respeito, as discórdias, as mentiras, a
hipocrisia e a corrupção política, são elementos de nossa barbárie regressada.
Essa contradição que nós vivemos no dia a dia em nosso país,
em nosso estado, em nossa cidade, com as pessoas que convivemos e com as que desconhecemos,
reflete a vida do Cristo que provocou inúmeros conflitos e oposições com as
autoridades de seu povo, de tal maneira que só podemos compreender a sua morte
quando relacionada ao seu contexto histórico, porque é na história que agimos e
formamos a sociedade, é na história que os fatos ocorrem porque os fazemos.
Na sexta-feira Santa, os discípulos e todos os simpatizantes
de Jesus ficaram desorientados, e sua morte demonstrou naquele momento que os
agentes da religião oficial judaica teriam razão, porque acreditavam que Jesus
os libertaria do jugo romano sobre a cidade de Jerusalém e todo o império
judaico. Estavam convencidos que o cristo libertaria Israel (Lc, 24,21). Desse
modo sua morte não seria o sinal de que ele seria o Messias esperado. Devido
aos sinais que ele havia operado durante sua missão entre o povo – os milagres,
os ensinamentos, a sua bondade e a sua autoridade - o seu trágico fim foi de
uma frustração profunda.
Levando em consideração o fato de que Jesus suscitou
efetivamente uma esperança messiânica, essa esperança somente é ultrapassada
com a ressurreição definitiva do Cristo. Portanto, a morte de Cristo é um
escândalo (1Cor. 1,23; Gl. 5,11) que deve ser explicado e ultrapassado, mas um
escândalo necessário no contexto do desígnio salvífico divino. “Espíritos sem
inteligência e tardos de coração para crer tudo o que os profetas disseram!
Porventura não convinha que o Cristo padecesse e entrasse na sua glória?” (Lc.
24, 25-26).
Neste sentido, a igreja primitiva, compreendendo a recusa de
Jesus diante de um messianismo político, sem negar a realidade e o significado
de suas esperanças que hoje atualizam-se em nosso meio na busca constante de
nossa conversão para assim podermos também como o Cristo superar a nossa
condição de crucificado para buscarmos incessantemente a redenção que está no
coração de cada um e, esta redenção revela-se em nossas atitudes e no nosso
comportamento, porque assim de fato vivenciamos a Palavra do Cristo presente na
Escritura Sagrada em vista de um mundo sempre melhor. Assim, através das
aparentes incoerências e das rupturas brutais dos acontecimentos que ocorrem em
nossas vidas, na nossa sociedade, estas, são passíveis de superação pela fé que
assumimos e convencidos nos tornamos, porque o Deus da Nova Aliança conduz a
história ao seu fim, que é a Ressurreição.
A partir daí, os primeiros cristãos, assim como nós hoje,
relacionamos a Paixão e a Ressurreição de Jesus com o grande desígnio de Deus,
para manifestarmos em nossas vidas o significado da sua história.
Mas como traduzir esse escândalo da morte do Cristo segundo o
desígnio do Pai. A morte de Cristo depende única e exclusivamente do amor do
Pai e do próprio Cristo. A imensa solidariedade de Deus e de Jesus para com os
homens. Tudo gira em torno do amor. São João tenta mostrar que Jesus assume a
sua vida e a entrega livremente como dom gratuito, para que os homens tenham a
vida: “Por isso o Pai me ama, porque eu dou a minha vida para a reassumir.
Ninguém a tira de mim; pelo contrário, eu espontaneamente a dou. Tenho
autoridade para a entregar e também para reavê-la. Este mandato recebí de meu
Pai” (Jo. 10, 17-19). Esta solidariedade de Jesus vai até ao extremo: “Eu dou a
minha vida pelas ovelhas” (Jo 10,15 b). Aí está o sentido profundo da morte de
Jesus. Ela é assumida livremente e ela é o ápice e a norma de toda
solidariedade humana: “Ninguém tem maior amor do que este: de dar alguém a
própria vida em favor dos seus amigos” (Jo 15,13). Esta norma de Jesus para com
os homens, indica também a norma de nossa conduta: “Nisto conhecemos o amor, em
que Cristo deu a sua vida por nós; e nós também devemos dar a nossa vida pelos
irmãos” (1Jo 3,16).
Jesus não se deixou enquadrar por nenhum partido ou seita de
sua época. Ele anunciou a mensagem do reino de Deus a todo o povo e não a
pequenos grupos fechados como são os partidos políticos, mesmo que sua
preferência estivesse voltada para os infortunados e marginalizados, os pobres
e excluídos da sociedade, aqueles que mais necessitavam de libertação e, por
isso, toma como modelo de salvação o pecador, o cobrador de impostos, a
prostituta, o pobre, o enfermo, o estrangeiro e o pagão, ultrapassando assim
todos os limites impostos pela sociedade de seu tempo e renunciando desta
maneira ao ideal zelota de libertação de Israel que agia em função de uma
libertação estritamente política. Esta maneira de agir e todo o seu
comportamento, tal como os evangelhos nos retratam, nos indicam que Jesus era e
é o portador da mensagem do Reino de Deus, universal e cósmico, pois para todos
os homens foi proclamado. E mais do que sua mensagem, esta é sua maneira de
agir, com autoridade e liberdade, que causou escândalo e que abriu os conflitos
com as autoridades de seu tempo e que acabou conduzindo-o à morte.
Pela morte de Jesus, Deus
realiza a reconciliação com os homens e destrói a barreira que dividia os povos
(Ef. 2, 13-16). Do ponto de vista religioso rompeu-se a barreira que dividia o
povo escolhido- os hebreus - dos outros povos, porque em Cristo agora somos
todos apenas um (Gl 3,28). A humanidade encontra a sua unidade diante de Deus.
Assim os homens encontram na reconciliação o apelo à conversão, aceitando a
mensagem do Cristo, reconcilia-se com Deus e necessariamente com os homens (2Cr
5,18-21/ Mt 5,24; 6,12; Lc 12,58). Neste sentido a morte de Jesus possibilita
uma mudança radical no próprio relacionamento entre os homens, de tal modo que
todos, ao menos em direito, tornam-se membros de uma mesma comunidade,
constituída por todos aqueles que a morte de Cristo reconciliou com Deus (Ef
5,25-27). E como esta morte de Jesus é a mais alta expressão do amor de Deus
para com os homens, que foi selada e aceita por sua gloriosa ressurreição, de
tal modo que estar com Cristo é deixar-se conduzir pelo Espírito, para que
possamos entrar em íntima comunhão de conhecimento e de amor com Deus.
A conversão como participação na morte e ressurreição de
Jesus exige a transformação do próprio homem e também da realidade em que ele
vive e participa, através do serviço e do amor, porque o Deus da revelação
bíblica é conhecido através da justiça entre os homens.
Esta conversão requer portanto que nós sejamos agentes
efetivos de mudança política e social, através do voto consciente nos
representantes que de fato tenham um compromisso com a justiça, a honestidade e
a integridade; requer o respeito mútuo nas diferenças de raça, sexo, condição
social e econômica; requer todo apoio a luta das mulheres pela sua determinação
e emancipação; requer a denúncia de toda e qualquer opressão que subjugue o ser
humano; requer sobretudo cristãos autênticos que sejam baluartes proféticos
para Anunciar através da sua conduta a Palavra de Deus e Denunciar através de
suas ações a injustiça que grassa em nosso meio.
A luta de Jesus em favor da justiça e da libertação do homem
esclarece muito bem o seu afrontamento com os dirigentes do povo: vereadores,
deputados, senadores, prefeitos, governadores, presidentes, juízes, delegados
etc..., bem como o próprio povo na busca de sua conversão e com a tradição
cultural que oprime e reprime. Parte-se deste confronto em que Jesus manifesta
o verdadeiro sentido da libertação que Ele veio anunciar a todos os homens de
Boa Vontade.
Assim, pois, carreguemos a nossa cruz no calvário de nossa
existência, pois muitas vezes somos entregues ao arbítrio dos furiosos que
insultam nossa dignidade, açoitam nossa honestidade, cujo malefício
transforma-se na pesada cruz que os ímpios e os infiéis nos infligem
gratuitamente, seja por inveja, por ressaibos, por soberba, por vaidade, por
antipatias gratuitas e muitas vezes inconsciente, pois nos diz o Senhor:
“Aquele que não toma a sua cruz e me segue não é digno de mim”.
Portanto, a glória de Jesus só é corretamente entendida,
quando é entendida como glória do crucificado. A nossa glória enquanto
convertidos no Cristo e N’ele absorvido só é possível na vivência e superação
das nossas provações do dia a dia, por isso a Paixão de Cristo revela-se na
nossa Paixão.
Como bem disse São Carlos do Brasil: “Não crucifiquemos
novamente o Cristo no lenho do orgulho, do ódio e da intolerância. Pratiquemos
de coração, o seu doce preceito: “Amai-vos uns aos outros”. Respeitemos a
dignidade da pessoa humana no seu mais sagrado e inviolável direito: o da
liberdade de consciência”. (Luta nº 25, 01/1958, p.37).
Seja louvado Nosso Senhor Jesus Cristo. Para sempre seja
louvado!
Pe. Sergio Nunes, ICAB
Por ocasião do sermão da hora da Agonia na Sexta-feira Santa
na Comunidade de Sto. Expedito no Mangueirão em Belém do Pará.
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